O meu primeiro relógio andou na guerra, é literalmente assim. Era um relógio marca Butex, andou na guerra colonial em Angola com o meu tio Alfredo, no longínquo ano de 1961, o ano em que esta guerra se iniciou.
Ofereceu-mo no ano de 1970, quando veio à metrópole gozar a sua primeira graciosa. A metrópole era como os ultramarinos designavam o país continental. Também lhe chamavam o “puto”, para vincar a desproporcionalidade existente, entre o território do continente com as colónias.
A graciosa, era um período de férias de quatro meses, ao qual só alguns funcionários radicados em África tinham direito. Para os nossos conterrâneos que exerciam esse direito, as férias começavam em Junho e, só terminavam em finais de Setembro, porque era condição essencial passarem a festa da Sra. da Azinheira, na aldeia.
O meu tio comprou na ourivesaria Ribeiro, onde actualmente é a ourivesaria do César, um novo relógio, marca Lancia que tinha como slogan (se o seu relógio não é Lancia, lance-o fora e compre um Lancia) e ofereceu-me como prémio, por mérito escolar, o seu velho Butex.
Mas se o relógio ao meu tio sobreviveu à guerra colonial, a mim, infelizmente sobreviveu-me pouco tempo, um ano ou pouco mais.
O início da década de setenta, por causa do crescente fluxo de emigração para França foi uma época de viragem na agricultura. Não havia gente suficiente para executar as grandes tarefas agrícolas, como as cegadas, e a mecanização da agricultura, estava a dar os seus primeiros passos na região, de modo que as máquinas ceifeiras ou cegadeiras como também lhe chamavam, não chegavam para suprir as necessidades.
Os lavradores viam-se por isso, obrigados a fazer essas tarefas com a prata da casa, ou, recorriam ao trabalho comunitário dos vizinhos, o chamado torna jeira.
Por isso nesse ano, a nossa cegada foi feita com recursos caseiros, tendo eu próprio sido um dos recursos. E depois de um dia inteiro a cegar, no Campo da Veiga, à noite, eu ainda reunia energias para ir treinar, como forma de preparação para o jogo de futebol que, iríamos fazer nesse domingo a Loivos.
O treino era ministrado pelo Flávio, e consistia numa corrida em coluna tipo tropa, até ao campo queimado. De vez em quando, parávamos e fazíamos umas flexões, actividade que eu próprio fizera durante todo o dia a cegar. Mas “como quem corre por gosto não cansa”, o treino era para mim, a actividade mais ligeira do dia.
Como o equipamento utilizado no treino, era o mesmo utilizado no trabalho, e, porque a concentração dos atletas era largo do tanque logo ao por do sol, para não ter de ir a casa, lavei-me logo na mãe de água, do Campo da Veiga.
Só no domingo, enquanto aguardávamos no largo do tanque a chegada do autocarro, previamente alugado à Auto Viação de Braga para nos levar a Loivos, e andava eu todo vaidoso a pavonear-me com um saco azul a tiracolo, onde guardava o meu equipamento, o meu pai, reparou que não tinha o relógio no pulso.
De imediato fui a casa, mas não encontrei o relógio. Lembrei-me então que na véspera, o tinha tirado do pulso, quando me lavei na mãe de água. Corri que nem um queniano até ao campo da veiga, na esperança que relógio ainda lá estivesse, mas infelizmente não estava, regressando ao tanque sem o relógio. O meu pai quando me viu sem o relógio, disse-me que de castigo, não iria a Loivos.
È fácil imaginar a minha desilusão. Valeu-me na circunstância o meu tio Miguel Novais que era um dos assistentes que ia na excursão, e virando-se para o meu pai sentenciou.
– O rapaz vai a Loivos, porque eu tenho lá em casa um relógio que era do Henrique, e fica para ele.
Acabei por ganhar o meu segundo relógio, marca “Packard” e fui a Loivos, participando num jogo histórico da nossa equipa, onde empatamos a um golo. Sem qualquer presunção, creio que até fui eu o autor do golo do empate.
O velho Butex jamais apareceu, a minha mãe, ainda pediu ao Sr. Padre João, para anunciar na missa a sua perda, mas o facto é que ninguém se acusou com o achado.
Nuno Santos