Fizemos um apelo a uma nova rúbrica que consistia na publicação de textos com maior conteúdo, alusivos a episódios vivdos na nossa terra. De facto apenas o Nuno se tem mostrado disponível e por isso se publica este 2º texto. Voltamos a insistir no apelo, pois sabemos que felizmente, na nossa terra, existe muita gente a escrever bem e com conhecimentos que merecem ser públicos.
"Confesso que sou um pouco céptico, face aos movimentos que existem para salvar o mundo da ameaça das alterações climáticas. Para mim, as situações de secas ou de chuvas prolongadas, repetem-se sistematicamente ao longo do tempo e não tenho informação objectiva e abalizada para alterar a minha opinião. Os discursos apocalípticos dos ambientalistas, não me têm convencido de todo, assim como aos principais decisores do poder, tal como aconteceu ainda recentemente na Conferência de Copenhaga.
Desde os meus tempos de menino e moço, que fui convivendo ciclicamente com o fenómeno das cheias, quer as do rio pequeno, quer as do rio grande, embora quase sempre coincidentes.
Para os que morávamos nas zonas mais altas da aldeia como os do Eiró, as cheias eram uma festa. Quando coincidiam com as férias escolares, eram até um pretexto usado pelas nossas mães, para nos tirarem mais cedo da cama, dizendo – Ide ver o rio que vai tão grande, já cobre a fraga.
A fraga era uma rocha que ficava por baixo da ponte quase no centro do leito, e funcionava para nós como um indicador de medida da cheia. Se não cobrisse a fraga não havia cheia e o rio ia apenas grande, mas se cobrisse a fraga então já era uma cheia.
Na ponte debruçávamo-nos sobre as suas grades com os olhos fixos na água, dando-nos a sensação de viajarmos a grande velocidade, na proa de um navio imaginário.
Outro dos passatempos era a fazer barcos de papel e deitá-los à água. Deitávamo-los da parte de cima da ponte, e corríamos depois para o outro lado, para vermos quanto tempo eles se mantinham á tona da água, fazíamos autênticos campeonatos, para ver qual o barco que mais tempo flutuava sobre a água.
Mas as cheias eram também uma fonte de angústia e preocupação, em especial os que moravam nas zonas mais baixas, como os do Bairro do Papeiro. Quando o rio saía das suas margens quase sempre a Bagoeira, hoje rua das Flores, tornava-se num outro rio paralelo ao rio pequeno, que vinha desaguar a este, junto à capela da Sra. do Rosário. Uma vez a cheia foi tão grande, que a água continuou pela rua de baixo, e foi desaguar ao rigueiro do Pontão, junto à pedra de mesa.
Os moradores do Papeiro viveram muitas aflições, e como as cheias eram quase sempre pelos meses de Novembro ou Dezembro e tinham ainda os porcos na loja, estes eram os primeiros a por a salvo, transferiam-nos para lojas de vizinhos ou para as eiras, porque as cheias tenham um tempo efémero, em especial as do rio pequeno não durava mais que algumas horas.
Contudo, nenhum dos moradores do Papeiro viveu o drama das cheias, como o viveu o casal João Gonçalo e Adelaide Sousa. Não há dor maior para os pais, que a perda de um filho e estes perderam uma filha, que lhes foi levada pelo rio. Apesar de viverem no Papeiro, o drama ocorreu no caminho dos Pelames, mais propriamente nas poldras que havia para a passagem pedonal sobre o rigueiro. Estas poldras eram também utilizadas como lavadouros, em especial quando os do rio ficavam cobertos pela água.
Foi no início da década de cinquenta, o casal tinha já então três filhos, dois rapazes e uma rapariga. Os rapazes são o Aurélio, e Arlindo e a menina chamava-se Albertina. Esta era muito chegada ao pai, e sabendo que ele tinha ido para a veiga, decidiu ir ter com ele. Chegada aos Pelâmes, Albertina ainda muito pequena não soube medir o perigo que corria pelo elevado caudal do rigueiro, e ao atravessar as poldras caiu sendo arrastada primeiro pelas águas do rigueiro, depois pelas águas do rio pequeno que ia também muito grande, e por fim até ao rio Tãmega.
Foi só ao anoitecer e porque a Albertina não aparecia em casa, que os pais entraram em sobressalto, e deram o alerta. O povo voluntariou-se para procurar a menina junto às bermas, mas a procura foi infrutífera. Durante dias bateram-se todas as margens do rio pequeno, do rio grande, e nem sinais de Albertina. De permeio iam chegando algumas informações premonitórias da desgraça, como a de alguém que estando sobre Ponte Romana em Chaves, vira passar no rio algo que lhe pareceu uma criança.
Durante esse período a angústia em casa do casal aumentava, os gritos lancinantes da Sra. Adelaide e da restante família, ouviam-se de quase todos os cantos da aldeia.
As buscas não se limitavam à zona periférica do nosso termo, chegaram mesmo até à zona de Vidago. Foi nessa zona que se passou até um episódio, que apesar da tragédia, foi depois tratado com alguma comicidade.
Vinha o Sr. João Gonçalo acompanhado do seu irmão Lelo Gonçalo e do Quico Alonso de mais uma busca, e utilizavam como via a linha do comboio, que nesta zona é quase paralela ao rio. Ora, como ainda estavam longe de casa e o cansaço já apertava, ouviram o comboio aproximar-se e decidiram fazê-lo parar e aproveitar a boleia. Puseram-se então na linha a fazer sinais ao maquinista. Este perante o insólito da situação parou o comboio e perguntou o que se passava. O Sr. João disse tão só.
- Eu sou o pai da criança.
Durante muito tempo, e pese embora este episódio tivesse ocorrido numa situação dramática, o mesmo serviu para graça de muita gente na aldeia.
Como depois do mau tempo vem sempre a bonança, passados um dias desta tragédia, um moleiro de Curalha viu algo a brilhar no areal, junto à margem do Tâmega. Intrigado aproximou-se para ver a razão do brilho que era de uma argola em ouro, que pendia da orelha de Albertina, e que aí estava semi-enterrada na areia.
Anos mais tarde este casal viu a sua dor e mágoa um pouco amenizada, porque lhes nasceu uma outra menina. Diz o povo que uma cópia da primeira, e por isso lhe puseram o nome de Albertina, que hoje conhecemos por Albertina do Gonçalo."
Nuno Santos