O rio virou campo de futebol
O Vale do Boi é um micro espaço do nosso termo que, fica na margem esquerda da ribeira da torre, embora localmente seja mais conhecida por rio pequeno. É um local muito bucólico, composto de um pequeno vale com apenas de três pequenos lameiros e uma encosta convertida em pinhal, que o resguarda da nortada quando sopra dos lados do S. Caetano. Este monte serviu no passado a António (Zeu) Dias Ferreira, familiar do proprietário, e a mais dois companheiros, António Barroco e Adelino Afonso, para uma experiência mal sucedida, na descoberta do el dourado da época, o volfrâmio.
Do outro lado do rio designado por Cotete fica um grande lameiro, outrora um único e propriedade de José do Rio, foi mais tarde dividido em sortes e arrendados a vários rendeiros, pese embora continuassem a pertencer exclusivamente a um único proprietário, o sr. Silvino Vitorino mais conhecido por Barrigudo, ainda que até nem fosse assim tão gordo para justificar esta nomeada.
Na década de sessenta, os meus pais traziam de renda um dos lameiros do Vale do Boi, dos poucos que não era propriedade do Barrigudo mas da família da D. Maria Eugénia Dias Ferreira. Era ali que eu passava a maioria das minhas tardes de verão, juntamente com o meu primo Cesário, que, por razões que eu não entendia muito bem, passava grandes temporadas em casa da minha avó Maria, tornando-se por isso no seu pastor.
Havia muitos mais miúdos rapazes e raparigas entre os quais; a Palmira, a Luísa Bigodona, o Zé Fernando, e o Arlindo Gonçalo, e o Agostinho Moura. A este grupo juntava-se o Norberto, que embora o seu lameiro fosse um pouco mais distante, tinha a vantagem de ser vedado, bastando-lhe assim tapar o portal para a cria não sair.
Como a nossa cria também não dava muito trabalho, a bem dizer, tínhamos a tarde livre para fazermos o que bem entendêssemos, nomeadamente; jogar à bola, às cartas, ou tomar banho na água da ribeira. As cartas mais usadas eram umas compradas em Espanha, um modelo ilustrado ainda existente, mais sugestivas que as cartas tradicionais. O naipe de Espadas eram mesmo espadas, assim como as copas, os ouros moedas em ouro e os paus eram um cacete. Curioso era os três de paus a quem chamávamos o “colhões atado”. Quando não havia cartas originais o meu primo Cesário fazia-as de caixas de cartão das camisas.
O banho era mais complicado, não só porque nos meses mais altos a água secava mesmo, mas enquanto corria a água era muito fria, por causa da sombra que dos amieiros.
Quando a ribeira secava o leito do rio transformava-se num pequeno areal do feitio de um campo de futebol. Ora o futebol antes como agora, exerce um enorme fascínio na garotada, e este campo tinha uma vantagem para os guarda redes que poderia fazer voos e cair na areia sem se magoar, e como do grupo fazia parte o Zé Fernando que viria a ser o guarda redes principal da equipa da aldeia, um dia, decidimos criar ali um campo mesmo a sério, com balizas e tudo.
E se quando o homem pensa a obra nasce, também nós pensamos e fizemos o campo. Para isso, cada um de nós trouxe à socapa dos pais uma machada para cortamos amieiros, dos muitos que havia nas margens do rio, fazendo com eles os postes e as traves das balizas. Os amieiros são propriedade dos donos das entestadas, que neste caso eram do Barrigudo, o qual alguém avisou do nosso belo trabalho.
Assim um dia, enquanto nós jogávamos no improvisado campo, fomos surpreendidos com a presença do Sr. Silvino e da D. Ritinha sua mulher, que foram ver in-loco a nossa obra-prima.
Em breve identificaram o sítio onde os amieiros tinham sido cortados, dizendo que nos iam denunciar aos nossos pais e à guarda. À guarda não nos denunciaram, mas fizeram-no aos nossos pais, com quem acordaram encerrar o caso, desde que os amieiros lhe fossem ter a casa. Uma vez que já não podiam ser aproveitados para a serração, ou para vender aos soqueiros, serviriam ao menos para lenha no inverno.
E foi pela hora sesta num dia quente de verão que o grupo de castigo carregou os amieiros às costas, tal como Cristo o fez com a cruz do pretório ao calvário, nós fizemo-lo do Vale do Boi a casa Sr. Silvino. Não sei quantas vezes eu mudei a carga de ombro, nem o estado em que eles ficaram. Só sei que esse desconforto me marcou de tal forma, que ainda hoje na altura da festa, eu me recuso a carregar os andores.
Nuno Santos