As cerejas do padre Luís
Diz o povo que, a ração não é para quem se talha, mas para quem a come, e o exemplo disso foram as cerejas da tia Laura Perpétua nos Marmorais, que estavam guardadas para o seu filho, o padre Luís, mas comidas por dois galopins, o Vasco e o João Manuel da tia Bia.
Era o tempo em que imperava na vida das populações rurais, um grande sentido comunitário, os vizinhos se ajudavam nos trabalhos agrícolas, as alfaias e outros utensílios domésticos eram partilhados, assim como as pastagens do gado. Ainda que não fosse como nas terras do Barroso, onde um único pastor em sistema de rotatividade levava ao pasto, todo o gado da aldeia. Na nossa terra, era comum ver-se gado de mais do que um proprietário, num único lameiro.
Por causa desse espírito de partilha, o Vasco e o João Manuel foram ambos com as vacas para o escorna cabras, onde a tia Bia trazia uma terra da sua comadre a D. Beatriz, que, além de terra de centeio tinha também um bom pastarrão. Este lugar situava-se entre Vale de Salgueiro e os Marmorais e agora, é mais uma parcela do Parque Empresarial.
Nos Marmorais fica também uma das maiores vinhas da aldeia, outrora propriedade do Sr. João das Crias, agora dos seus herdeiros. Uma boa parte do vinho produzido, vendia-o a comerciantes da cidade, como o Faustino, outra vendia-o na taberna que explorava no Eiró, pela sua mulher, ou pelas suas filhas, a Maria e a Toninha, as duas que mais tarde abandonaram a casa dos pais.
A vinha era os olhos da cara do Sr. João, e onde passava a maior parte do seu tempo, na companhia da Cuca, uma égua, com que ele fazia a lavoura. Para acompanhar retemperar as forças, o tio João levava sempre com ele um pipito de vinho.
Estes pipos tinham uma dimensão variável entre um a cinco litros. Usavam-se muito para levar o vinho para o monte ou nos dias de grandes trabalhos. Diferenciavam-se das pipas não só pela dimensão, mas porque não tinham portinhola. No seu dorso tinham um pequeno orifício que se tapava com uma rolha, por onde se bebia. Nos trabalhos colectivos o pipo passava de mão em mão. Cada homem ou mulher antes de levar o pipo à boca limpava o orifício com a manga da camisa, muitas das vezes suja de suor, sem qualquer receio de contágios.
O Vasco e o João Manuel viviam paredes meias com a taberna do Sr. João, e conheciam bem os seus costumes. Como a propriedade do escorna cabras era vedada deixaram a cria sozinha, e foram sorrateiramente à descoberta do pipo, a fim de lhe darem umas valentes goladas, enquanto o Sr. João na sua azáfama, estivesse mais afastado do local, onde tinha o farnel.
Era o tempo das cerejas, e os rapazes descobriram não só o pipo, mas também umas cerejas vermelhinhas, as tais que a mulher lhe pedira para ele apanhar e presentear o seu filho Luís, padre na aldeia de Edral concelho de Vinhais, que nesse dia vinha à aldeia visitá-los.
Mas os rapazes tiveram uma dificuldade inesperada. Nesse dia o Sr. João tinha a companhia da Fadista, uma cadela do José Serra. A Fadista até conhecia os rapazes, porque eram vizinhos, mas como viera com o Sr. João, defendia o seu património, e assim quando os rapazes se abeiraram da cerejeira, começou a ladrar.
Só que o Sr. João e a Cuca na sua labuta, vieiro abaixo vieiro acima, não se apercebeu da presença dos rapazes porque sempre que faziam o percurso na sua direcção, estes escondiam-se. Quando faziam o inverso, atiravam-se às cerejas, pese embora os latidos da Fadista. Para melhor chegarem às cerejas, montaram um estratagema tipo equilibristas de circo. O João com um maior porte atlético ficou em baixo, e o Vasco mais franzino, trepou aos ombros do João, e daí com a camisa bem apertada pelo cinto, enchia literalmente a blusa de cerejas, e não deixaram uma única cereja na árvore.
Quando à noitinha a senhora Laura nas escadas da tia Bia lançava impropérios contra dois gandulos que lhe tinham roubado as cerejas guardadas para o seu filho padre, o Vasco, começou a entrar em pânico, antevendo já o castigo da Maria Sobreira, sua mãe. O João apercebendo-se do receio do amigo, disse-lhe em surdina.
- Tem calma! Sr. João já me disse que não reconheceu os gandulos.
A suspeita nunca recaiu nos rapazes, muito por causa da Fadista. Pois se ela ladrou tanto, é porque não conhecia os ladrões das cerejas, o que não era o caso do Vasco e do João, que eram seus conhecidos.
E assim se cumpriu a máxima! Bem estava guardado o bocado, mas para quem o comeu.
Contada por Vasco
Recontada por Nuno Santos